domingo, 1 de janeiro de 2012

Partes: 1. Subversos; 2. Estou assim como se no patíbulo / O homem é uma fruta; 3. Rescaldo

                   
Subversos


I

Morfologia



Mãos cheias de fome,
no vácuo pulsa o homem.
Já foi tudo feito,
já foi tudo dito.

Fome cria o nada,
e advém um big bang.
O homem se ilumina
e logo se expande.

Não é o fogo-fátuo
desses cemitérios,
nem o de santelmo
de todos os mastros.

É a chama do fósforo,
que é a do sinistro.
É a do amor in vitro
no ventre da história:

a muda palavra.


b

Põe-se o homem nas próprias
mãos cheias de fome.
É o que o nega e o afirma
e lhe arranca a sílaba.

Não diz nada ainda,
mas soma os gemidos.
(Não foi a alegria
que engendrou o verbo.)

Vem o homem dos fatos,
porque os fatos gritam.
Ele doeu antes
de ser subjetivo.


c

Mãos cheias de nada,
ele espalma o golpe,
golpeia e subjuga
a ideia de fuga.

Não é ainda o ódio,
nem é o contraste:
é o que se divide
(e um fica mais forte).

d

O ódio se constrói
com seus ademanes
e seus vagos nomes,
sem qualquer andaime.

(A força de um
não é um dois mais dois,
pois subtrai de nós
aquilo que é óbvio.)

O ódio se coloca
na estante de trás,
última leitura
de lábios abstratos.

(A força de um
é o domínio às cegas.
Pouco lhe interessa
o fundo do tempo.)

O ódio se descobre
e fica mais belo.
Ele se acumula,
até que explode.

(A força de um
se deteriora,
véspera do pus.)
O homem se reencontra.

e

Mãos cheias de ânsia,
empilha fonemas
que ainda se buscam
nesta pré-história.

É matéria nova,
carregada de erros.
E ele purga e expurga
para ser contínuo.

O homem se nivela
no rumo do cimo,
e queima por dentro
porque o outro existe.

f

O outro se ilumina
e aprende no ventre.
Ele é perfectível
para sempre e sempre.

O outro se alimenta
com milhões de bocas.
Todas lhe pertencem
e se pronunciam.

Quando as mãos se afirmam
entre tantos verbos,
o outro é o universo
e, por diverso, é

um discurso aberto.

              

 

II

Dor



A dor que é só dor se embota,
anestésico de si.
(Vibrato: nervos anímicos
versus anêmicos físicos.)

Como a ausência dela, mata.
Havendo alívio, ela é o tato
cósmico, o eu estar aqui
de pé, deitado ou de quatro.
(Alívio é mero após-parto.)

Ela antecede o adjetivo.


2

A dor não dor é artefato
de mímicos, prima-donas
e mortos-vivos sem palco:
prescinde de paliativos.

Ela a si mesma se engana

e se esvai em merda e em nada,
ou em um flato festivo.
Tal a do estalar do cravo,
tal a do puxo no vaso.

Mais medíocre que o alívio.



III

Luz

Os olhos de loura luz

dizem que o mundo se fez
outra vez neste pedaço.
Mas agora não existem
nem mágicos nem paredros,
e o amor rola em catadupas.
É claro que a luz que luz
se faz imperar, de bela.

Que espera ela da cambaia
chama desta pobre vela,
que só vela as velhas culpas?
Oh, solstício de verão
neste tenebroso inverno,
será talvez que me indultas
os fracassos, os delitos
e adventícias cãs e rugas?


2

Quando a noite joga o frio
sobre o corpo dos aflitos,
um deles sai de mansinho
e procura a luz avulsa.
O brilho então é difuso
e o amor é água da torneira
com defeito no banheiro:
pinga, pinga, mas não lava.

O ego encolhe, e a realidade
do sol rola como lava.

                

 

IV

Chão



Ela é de outro mundo, penso,

ao vê-la de capacete
a sapatear no betume
à luz calhorda dos postes.
Não é histérica, não;
é calma, serena, chã.
Foi para me dizer tchau.

[Pouco antes batera as pálpebras
(cílios me fazendo sim),
sem poder dizer palavra.]

O guampo acelera a moto
e ela salta na garupa.
Meus lábios sorriem torto
para o copo de cerveja:
que cerveja vagabunda.


2

Meu caro: o fato é que as nuvens
aguardam o teu retorno
com o conforto dos sonhos.

Lá, damas não agasalham
os seus belíssimos glúteos
no selim dos inimigos.
Lá, a ciência é a inconsciência
e o beijo é o queijo da lua.

Ah, mas preferes, preferes
doses dantescas de mundo,
o convívio das heteras,
o chão cuspido da vida.
    
           

V

Ônibus


O tempo está na outra ponta
do percurso, quando o atraso
é todo o real do espaço.
Não se olham os olhos, e os corpos
se juntam em solidão.

Hálito feminino roça
com licença meu ouvido,
comunicação inútil.
Vago, mais que vago, ausente,
o lá-fora não pressente
todo o coquetel de odores
que se agita pelas ruas,
as moléculas frenéticas.
A linguagem dos suores
é plena de palavrões,
de cansaços maldormidos
e de orgasmos mal lavados.
Perto, alguém que puxou forte
o fumo antes de embarcar.
Um flato se insinua, fino.
O gel dos garotões arde
na mucosa das narinas
para rodopiar no cérebro.
Estômagos regurgitam
vapores de álcool da noite.
As sacolas escolares
fedem a adolescentes
recém-vindos do curtume.

Ah, o hálito que roçou

uma de minhas orelhas
com seu cálido perfume
– único, inconfundível –
agora não é visível
do canto destas olheiras.
Afogou-se no fartum
ou saltou no último ponto?
Onde a amada passageira?


2

Quo vadis já vi o filme,
vejo e até quando verei?
Cada sílaba lamenta
seu lugar e sua sina
na velha palavra-ônibus.

                   


VI

Carne

Mais que oblongo atrás da mesa,
faz suar a sua fome.
Há um quê de crua tristeza
em seu rosto gengibrado.

Lá fora o sol escaldante
coze o chão do beco oblíquo
que dá nos fundos do teatro.
É tarde: duas e pico.

Mais que oblongo àquela mesa,
ele é o último do almoço.
O prato cheio ele o ataca,
estrênuo, com garfo e faca.

Serviu-se com abundância
das vasilhas do self-service.
Mas a carne é “em separado”,
não pode ser selfservida.

Enquanto ela não vem, come,
pois a fome não espera.
(Só se espera pela amada,
que é carne de outra espécie.)

Há um quê de fria tristeza
no gengibre de seu rosto.
Ele quer se decidir,
mas para isso não tem gosto:

espinafrar o garçom?
mandá-lo plantar batatas,
ir às favas, ir à merda?
dar uma banana à conta?

Oblongo, mas já não tanto,
levantou-se, foi ao caixa,
pagou a conta. O garçom
recolheu o prato limpo.


2

O destino do serôdio,
ha, é ser jogado no olvido.
Haverá sempre um asilo,
uma varanda, um bacilo.

          

 

VII

Bombarda


Este é o meu reduto, assim:
pedra, poeira, pau, cinzas.
Aquela que chega deve
curvar-se ante meus signos,
que de mim são todos dignos.

Havia, em um tempo longe,
in-fólios novos na estante,
lâmpadas nos corredores,
euforia na cozinha,
e nunca faltava o vinho.

E daí se a realidade
é outra, se também se basta?
Não há torres nem marfins
nem muralhas seteiradas.
Minhas defensas caíram

com o que existira em mim,
e me acho mais nu que rei
sem coroa e sem cetro.
Mas pratico meu nudismo
quase feliz, por decreto.

Por que a máquina de guerra
bombardeando meus portões?
Se sou aos olhos ruínas
(pedra, poeira, pau, cinzas),
sou ainda história linda,

ou ecos, ou palimpsestos,
ou sólidos alicerces.
Um dia alvorecerei
como em sonhos me guardei,
guardadas as proporções.


2

Bom que as proporções se guardem,

se resguardem – e se escondam.
O patético de tudo
é o nascer do sol se pondo.

             

 

VIII

Vitrine

O perfil é belo e lânguido,
a propor bicos de pena
e carícias de través.
Mas quem se atreve, morena,
tocá-la (sem retocá-la)
nessa longínqua vitrine?

Do lado de cá estão
os párias e os operários
carregados de quimeras,
fascinados por você
como se por um confeito.

Vista assim ao meio-dia,
bem nel mezzo del cammin,
tem algo de suculento,
feito uma jabuticaba.

Vista através da vidraça
se parece com um ícone
desenhado numa lágrima.


2

Sensual e tão, ela é mais
que vulcão a fumegar
na madrugada eruptiva.
Ela rompe a renascença
para renascer aqui,
flor, fruto, semente e grelo.
Ancas anchas, coxas quentes
e trescalantes reentrâncias.
Sua pele queima bom.


      

IX

Esquina


Ela, à distância de um beijo
atirado pelos dedos,
parou, súbito, na esquina.

Parecia mais madura
com o novo penteado
e com outra carnadura.

Vinha de seus carnavais
e estava se dando mais
a rigorosa ginástica.

Brônzea de pelos e pele,
membros fortes, torneados,
parou ao sol, de repente,

com se levasse um susto.
No entanto havia um laivo
de sorriso, algo em seus lábios,

algo em seus olhos, passado
o átimo de hesitação.
Havia, na verdade, algo

como uma revelação,
ou uma revolução.
Ele ficou extasiado

diante da moça, estático.
Ambos, de olhar para olhar,
ali, no meio da rua,

ao sol, fizeram o pacto.


2

Aquilo que um dia alumbra
no outro não se consuma.
Então é aquela tortura:

neste mundo tão formal
até pacto de paixão
tem de ter assinatura.

A simples tesão, compadre,
não merece tanto alarde
se não é fait accompli.

                     

 

X

Estrada


Será preciso optar entre
via-sacra e Via Dutra?
Percorro a Belém-Brasília
no lombo de burro xucro.

Viajo para aquém de mim.
A surpresa no caminho
seria qualquer calvário
a espantar minha alimária,

que aliás não teve de optar.

Será preciso escolher
a cavidade orbitária
no momento de chorar,
se não tenho de chorar?

Eu me penso como nada
para não me fatigar.
Por sinal, nada me obriga
a pensar coisa nenhuma:

sigo só a seta siga.


2

O mel do século, e ele mal
começa. Tamanho é o tédio,
a fingida indiferença
ou qualquer outro merdume,
que o consolo é a Internet,
o control-Z do futuro,
o tal delete da história.




XI

Spotlight

Eu não estava ali muito
para analisar Descartes.
Ouvia o inglês boca-mole
do antiquíssimo Paul McCartney.
A luz me chapava a pele
e eu era quase yesterday
no meu colorido albino.
Eu era mesmo menino.

A fumaça do churrasco
me dilacerava o carma
na feérica atmosfera
da calçada do boteco.
A moça obliquava a bunda,
com cheiro de calcinha úmida,
sensualmente forte, tosca,
o jeans no ânus, feito rosca.

Depois de me olhar de banda,
como se eu fosse bonito,
e puxando o cós das calças,
sentou-se, toda períneo,
a cinco metros de mim.
Ela lá, com seus amigos,
eu cá, com meus devaneios:
cheiros, sumos e pentelhos.

2

A noite bate mais frio
nos estames solitários.
O asfalto exala o chorume
de todos os que passaram
a caminho dos orgasmos.

Longe, um portão se fecha.
Não haverá luz no pátio
quando do triste regresso
(que é um longo pensamento,
um inexperiente cogito).

Mas é tudo quase lógico

nas aldravas silenciosas.
Mas é tudo consumado
na realidade mental.
Mas é tudo assim: tão nada.


 

XII

Noé

Ave, Maria. Blasfemo,
te saúdo sob chuva
de impropérios. É o dilúvio
que este novo amor arrasta,
e perde, e acha, a minha arca.

Ave, loura. Sei teu nome
como quem sabe do umbigo.
Tu és e haverás comigo
nesta manhã já antiga:
eras bem antes de ser-me.

Ave, tardia mas plena
no meu terreiro juncado.
Terei em mim o teu gosto
de reminiscências e outros,
de entranhas desafogadas.

Estarei em alto-mar
ou ainda no mesmo mundo?

O que importa é estar contigo

como na prancha de surfe,
solto com meus animais.


2

É o navegar impreciso
que depende de uma pomba.
É quando não se precisa
nem de âncoras nem de bússolas,
e o que importa não é o porto
(como se diz por aí).




XIII
Pernambués

A voz e as vozes na noite
com certa alegria. O chão
sobe como um corcoveio.
A moça de saltos altos
é mais leve que o estrangeiro
e seus sapatos cambaios.

Uma cachaça no aguardo,
a amizade como antiga,
o vibrar do ar musical
sob os sovacos, a argila
das paredes milagrosas:
inaugura-se o convívio,
o insuspeitado convívio.

A noite é de todo dia.


2

Onde estariam os gatos,
os cães? Onde os percevejos,
as libélulas, o medo
atento dos socavões?

                  



XIV
Levantina

(Tanta a meiguice do míssil
que nem pareço ruínas.)

Engulo imagens dissímeis
e sofro mais que ela vendo as
fotos de veias rompidas
e de pânicas amêndoas.

Sofro mais, porque os séculos
fisgam minha carne e cobrem
de pátina toda pátria
que se abstratiza em cadáveres.

(Tanta a meiguice do míssil
que nem pareço ruínas.)

Sofro mais. Ainda que eu ame
a hostilidade das fronteiras,
não tenho como colher
a fruta que não conheço,

não tenho como empilhar
meus mortos, nem esses vivos,
e não tenho como ser
a bomba de humana dor.

(Tanta a meiguice do míssil
que nem pareço ruínas.)


2

Tanta a meiguice do míssil
porque ele é obsoleto.

                  


XV
Chuva

Displicentes, os passos
o levam, e ele se lava
na longura da avenida.
É como se num aquário
sem ângulos, sem esquinas,
um turbilhonar de sonhos
e sensações pequeninas.
Não há o pavor do náufrago,
apenas o simulacro
obnubilado do pânico.

Aonde nunca chegar?
Por que a verticalidade
dos anseios que lhe caem?
Por que um garoto só
quer-se tanto esvair
no charco cinza da tarde?


2

Mas já não seria, acaso,
assim, uma crase de águas?

                  

XVI
Cheiro

É quase nada e, por isso,
é quase tanto: sonífero
que desperta o mais recôndito,
tempo macio e sem curva,
erva daninha que cura.

Vem da hora nula do banho
para se encorpar no espírito
e descarrilar o cínico,
faz adolescer o cético
e fantasiar o sexo.

Não é apenas eflúvio,
flui como ondas sonoras
e impele o apelo das selvas.
Injeta-se em cada veia
e nas cavernas do pênis.

Uma existência em si
igualmente para todos,
todos donos e sem posse.
Uma existência em si
que goza com o não gozo.

É um na combustão de vários
sintetizados na carne,
o produto original
de um laboratório belo,
tão belo quanto intocável.


2

Ah, somente tu não tocas.
O que te dói, e dói fundo,
é a falta de vocação
para ser um todo-mundo.

                   


XVII
Sex-appeal

Foi assim, e assim seria:
beijei o frio estuque
de parede mais que dura,
e fiquei ciente de mim;

toquei o pelo de pêssego
peco, e perdi o apetite;
mergulhei num sonho casto
e, após, masturbei meu cérebro.

Foi assim, e não será:
mirei o centro da Terra,
e o magma já esfriara;

amolei gume de faca
e, só na hora do corte,
notei que havia outra face.

2

Teu embarras-de-richesses
é diferente do dela:
o tanto e o tantão de nada.

                  

XVIII
Ponte

O tempo nos desencontra
e o amor é ponte precária.
Venho daquela mulher,
eu fotografia antiga
em passaporte vencido.
Venho dela para mim.

A fronteira me retém
na humilhação das algemas.
Para ela tudo é fácil,
ela transita por mim
enquanto quero ir em nós.
Ela pede água, e a tem,
e eu só me afogo na sede,
pois sei que não vou além.

Se dela para mim venho,
venho trajando o escárnio
com que me olho do outro lado.

2

A ponte do nada ao nada
é o amor que se revela.
Ele fica solto no ar
como terra de ninguém.
É o vácuo que preenche a ponta
do tempo e pontua a hora:
a ilusão que não se ilude,
limite pênsil da vida.

           


GREEN CARD

Pedro Ivo fez mal ao pai,
e ninguém contesta os fatos.
Pedro Ivo se desandou
e quis construir seus atos.

Fiz a liberdade, pai,
agrilhoado até os dentes.
Sou o culpado de mim;
é justo que me condenes.

O Araguaia será sempre
um pouco de minha culpa.
Nos perdidos corpos frágeis
espanta a força da luta.

Ah, o betume das praças
também bebeu o meu sangue.
Alvejei as multidões,
guiei meus cães e meus tanques,

silenciei todos os hinos
e todos os vladimires.
Depois, na esteira do medo,
beijei a mão de Kissinger.

Aliciei-me puta do mundo.
Cada canto era um bordel
e cada dor um orgasmo,
com meuufanos e ameoudeixeos.

Bem que eu dissera a João Cândido:
empunha a tua chibata
contra o que vem do futuro,
com Churchill, suor e lágrimas.

(Não sei por que ainda se ouvem
os brados, os brados roucos
dos náufragos ancorados,
dos negros alforriados.)

Pedro Ivo traiu o pai
quando desenhou fronteiras
e morreu na travessia
da rua de sua casa.




XIX
Leilão

Sou uma coisa que dói,
e nem é tanto por mim.

Por que me jogo no vão
do abismo, se há uma ponte?
Oh, venham-me teus afagos,
que me apronto para a imola.
Venha-me teu sexo gasto,
que para isso renasci
como quem procura a morte.

(Ah, tua figura esbelta
arreganhando-se em hasta.)

Não é bem por mim que rói
este asco dentro de mim,
pois lá fora o mundo chove.

Sou uma coisa que dói,
e não é mesmo por mim.

2

Enfim. É o choque do pé
no chão. Ou será que não?

                  


XX
Retorno

Ah-ah, o outro que se vire
nas mãos do agiota Shakespeare.
Will, Will, que Stratford recolha
teus cansados gonococos,
porque ficamos blasés.

Um dia ela acorda, Will,
a exalar o ácido graxo
de um estômago senil.
Então dirás: “Sou palhaço.”
Como somos imbecis.

Era preciso que houvesse
uma bicota no escuro,
sem dentes e devaneios,
em teatro de bonecos:
o tálamo como palco.

Há toda uma estrada real
entre nós. E o vinho adúltero
alterado da estalagem.
E a peste. E o fogo e o feto,
e o fantasma de meu pai.

Somos como por acaso
no pátio escuso do mundo,
nas estrebarias de Áugias,
sob as vestes fedorentas
e mecenas da rainha.

Acaso. Nos bastidores o verso
incinerado. Eu me compro
ao preço vil do retorno,
mesmo no medo das pontas
atadas do vão destino.

Um dia ela acorda, Will,
e toda crepuscular,
à luz do longo abandono,
te ofertará tua, a própria
caveira.

(Junho de 2007)




Estou assim como se no patíbulo / O homem é uma fruta

                           1

A ponte pertinho da água
tão perto que espremia a sombra
a sombra cada vez mais densa
mas a água tinha pontinhas de luz
a água enrugando-se tem luz.
E até onde a ponte não permite a queda,
segurando-nos pelo peito,
eu não fazia o poema.
Eu nem sequer chorava.
O vento secava a saliva de meus lábios
a palavra seca estalava
feito galho pisado numa floresta incinerada.
Eu dizia: Amor me toma pelos braços
mas na verdade sentia a morte nas pernas
uma dor aguda me arrancava a próstata
e eu tinha vontade de comer jabuticaba
à margem do córrego.
Eu não queria saltar a balaustrada
a água estava muito perto
e com a aparência fria de noite que chega ao ar livre.


                    1

O homem pisa no concreto
nem sabe que existe
faz conjeturas e ousa devaneios
curva-se diante duma planta
e a esmaga depois com as mãos.
Na virilha dos dedos a seiva
um verde que adentra poros e veias.
O homem redivive no crime
nem se soubera morto ou fraco
nem se soubera finito ou gente
apenas carrega o medo
um encontro no dia seguinte.
Mas o homem não larga a ponte
e consigo tem a saudade da planta
porque ele fez o estar e o que passou.
O homem cimenta as próprias emoções
mas também faz pontes
e também procura plantas
só que para no meio da ponte
e esmaga a planta.
E ei-lo que se esquece se esquecendo
pelo medo mediterrâneo de ser.


                               2

Não faço o poema
nem sequer me imagino em pranto.
Edito uma postura e saio
ato as palavras e as atiro ao fundo.
Ao fundo de quê? Do nada
que multiplico e deduzo de mim.
As palavras tecidas compõem a antenoite
fluem como o escuro
ou como a água embaixo da ponte
como o escuro que chega
como a água que passa
ou como o que sou e se acaba.
Foi sonho querer inovar
o gesto é lento e maduro
é o mesmo bordado
é o mesmo traçado
mas a cor uma só
um vermelho de sangue e carne crua.
Nem sequer imagino o poema
ele é uma gengiva impregnada
de ideias
com uma risca de sangue
que o dentifrício adultera.


                               2

O homem é tão real quanto uma lágrima
mas sonha impossível o impossível
e quase grita de desespero
quando não encontra no finito a saída.
Frio de existir
água gelada nas têmporas
há uma chuva fininha no vento.
Perfume de ervas arrancadas
pelo dente dos animais
um ruminar vivências e desaconchegos
as estradas são opção no corpo do medo.
A mão próxima que escapa
o galvanizar dos desencontros
na mesma ponte do viver
porque o ser se estratifica para além do ser
e se mira ruínas de si e do outro
pois o homem não é só
uma coluna que resiste única no tempo.
O homem é a ponte para o outro e para si.
O homem é mais real que o mundo.



                               3


Meus dedos estão lívidos no parapeito
a poesia não existe
gaze na ferida recém-aberta.
Logo me vejo ali e me sinto entre mesas
minha geração na voz dos Beatles
nascente feito sangue aos borbotões.
Alguém me bolina nos rins
esqueço o choro que me coça o nariz
e me ergo como o pênis numa ereção sem promessa.
Não peço nada além de um canto
os olhos porém são ávidos de resposta
e as mãos procuram o copo
a garganta quer um gole e um grito.
E eu grito acima da ponte e de mim
sou tão pequeno e a ponte sem trânsito.
Todas as insuficiências me chegam
infladas de hipocrisia alheia
e me premiam com afável sorriso
quando o que quero é carne, sangue
algo violentamente humano e próximo
em que a gente toca e ao qual se transporta.



                               3

O homem é a concreção de si
um cruzamento de estrias e passos
um caminho desandado
um ermo.
O homem é o homem sem propósito
um pedaço de ponte caído na água
a palavra errada nos lábios mais certos.
O homem é um sacolejar de vísceras
promessa de amor promessa de amor
e um repente de solidão e agonia
a única arma é o suicídio
que repousa inquieto nas mãos.
Um dito sem resposta é o homem
o poema é o dito impossível
e o verso está na conta do sonho
e nada é como é: sério.
E o homem brinca consigo
crê apenas que morre um dia
mas a dor em ser é a maior
e é ao mesmo tempo a quimera.
O homem é uma merda qualquer
e vale por si a grandeza de tudo
até a luz no fim do túnel.


                               4

Não é preciso ter-me beijado
para saber do amargo.
Basta um olhar ou um verso de soslaio
uma letra numa cripta ou um exame de urina
um calendário marcado
uns lábios que não aceitam compromissos falsos.
Nem é preciso buscar-me à ponte
para saber da inclinação à morte
não cultivo estações nem gozo nas coxas
sou agudo nas intenções concretas
já pronto para as recusas querentes.
Não é preciso ter-me encontrado bêbado
para saber da embriaguez
acumulo porres e vômitos históricos
minha filosofia está grudada nos dedos
e não se pode esperar que eu a traia num brado alcoólico.
Não é preciso querer-me beijar
só quero curtir uma vulva intumescida.



                               4

O homem se pôs concreto na pista
visualizou-se maneiras e tiques
esborrachou a cara do terror sob os pneus
internou-se na clínica
comeu alface e fez metafísica.
O homem estalou feito coração envenenado
o ar da cidade é pior que o de insolência
havia um punhado de coisas para fazer
inclusive uma mentira e um gesto premeditado
como verso largamente esperado.
O homem é a redundância das comparações
um ônibus lotado que se inclina na beirada da rua
um urubu visto agasalhado no passado chuvoso.
O homem é uma brita mordida.



                               5

Prefiro falar de mim na curva
porque a derrapada é iminente
e prefiro falar de mim à janela
porque me posso fechar de repente.
Fui animal repulsivo
agora me fito no espelho do rio
sou vaso oblíquo para a bundona do burguês
e sou cacófaton bem posto
e sou piolho no saco
sou punheta dantesca
e sou desprezo aceito e fichado em meu arquivo
mas sou sobretudo um jeito.
Prefiro falar de mim no casulo
porque ainda não tenho asas
e prefiro falar de mim sobre o penhasco
porque o salto é a única coisa palpável.
Fui misteriozinho frívolo
agora sou engano que não se decifra.



                               5


O homem é sonho de mar em alto-mar
e é o desinquieto das sobrancelhas
e o sinaleiro da encruzilhada.
Mas é o desvario da posse
e o irresponsável da paz
e o ruído de um copo quebrando-se.
O homem é a silhueta na ponte
e um sapato na correnteza
um rio abaixo
um fio de leite nos lábios
uma coisa antes do trago
um arrepio insolúvel da carne
o que não devia e não o devir.
O homem é um ser encurralado
a ânsia do retorno e a predisposição do fumo.
Mas é a permanência do outro
e a consciência do que é futuro
e a consequência do que é remédio
e é sobretudo o veneno da demência
e a dissolução do pacto.
O homem é o bode expiatório de si
e um pato.


                               6

Estou é na ponte e não em mim
estou fora de mim com as mãos no bolso
uma sensação de orgasmo na boca
e uma frieza descarada nos pés.
Estou assim como se no patíbulo
e miro a água fragmentando-se em luz rápida
impressão inumana de poesia conceitual
falta de crença e de filosofia
reivindicando o nonsense pelo amor de deus
sou uma espécie de vácuo vestido de negro
talhado como terno torto no cabide
uma claraboia imersa no pranto.
Estou e sou tão desencanto
um faxineiro bebendo à porta do bar e pensando no amanhã.
Vou engolir a ponte.


                               6

O homem é fácil
qualquer algo que se move
um caminhão de mudanças
um animal domesticado.
O homem se espelha na árvore podada
e na poluição dos afogados.
Há dias em que o homem tem repentes
mas é a mesma coisa de sempre
a imobilidade
a estatueta de bronze.
Por incrível o homem é mulher
e tem mania de colecionar selos
e escolher ditaduras.
O homem é uma lágrima na gravura
um espinho na unha
um pontapé nos testículos.
O homem é necessário
é aquilo que se ama
uma imensa ternura
um choque tremendo na nuca.
O homem é uma fruta
a boca que ele mesmo colhe e chupa.


(Agosto de 1978)


Rescaldo



Ambiguidade

Falta um gesto
para que eu signifique.
Falta um passo
para que você se concretize.

Mas ando meio labiríntico
e aponto para a lua
de um planeta morto,
enquanto o sol se estagna
a queimar em seus olhos
cambiantes.

Nada converge para nada.
Sou um homem só
no pátio que você ilumina.
E o meu luar faz gelar
o sangue em suas veias.

Não há distância entre nós,
e sim o vácuo frio de você ambígua.
Em mim apenas fica
a sensação de que não existo
ou de que nasço no desterro.
Você morre em você,
inteira, plena, frívola.

Nada suprirá nada.
Todos os passos já ecoaram,
todos os gestos
já fizeram o delineio do não.

            
                 
Atávico

Por sobre a falésia
diante do mar
o voo marítimo dos pássaros
o caminho cósmico
o pensamento único

Aqui a voz é densa
na salmoura do vento
um som humano
é quase um poema

A vida vem toda dos oceanos
a netúnia saudade me bate no peito
eu lá estivera em outras eras
unicelular no caldo da vida

Há sem dúvida
na epiderme do planeta
cânticos imemoriais

E perpassa na tarde um suave arrepio

enquanto um homem febril
pesca contra a luz dourada
cada sílaba
cada tom que se assenta
na superfície das águas



A noite do destino

O dia para nós seria o último
os templos enfeitados para os cultos
tínhamos que aplacar a suposta fúria da deusa
ó pérfido Sinon
eis a virgem Cassandra nos prediz
os perigos
porém estamos surdos
no que seria o nosso último dia

Cassandra? Ora
ela de novo
a tua inspirada noiva
infeliz Corebo

Que antevisões terríveis de Troia
teve para então a pitonisa?
Entre as ruínas
com as pesadas armas da juventude
entrega-se Príamo
ao seu destino

E Anquises em fuga
sobre os ombros do filho
pergunta-se atônito:
Mas quem daria ouvidos
à profetisa Cassandra?



Na gávea

O tempo
             com seu dia de sol
sugere a existência do mar
saudade salobra
lágrimas de Portugal
                  
Fico só
        solidão longa
ando pelas ruas
a vadear o asfalto quente
a suar na testa
nas pernas
os óculos descem pelo nariz
há excesso de brilho
ninguém mais convive comigo
além de mim

O mar ruge
na memória
todos os escaleres
o madeirame dos veleiros
as bandeiras rotas
as rotas perdidas
navegar impreciso
que se arranca do passado
e deixa sua marca
cicatriz das águas
profundas

As velas todas pandas
as mãos laceradas pelos cabos
um bombordo
um estibordo
um gerúndio vigiando
cochilando na gávea
o oceano balançando
arfar constante
algas gaivotas

terra revista!

Na esquina tomamos o café sem esperança
o diálogo na banca
a manchete que se imiscui na vida
que se prostitui
páginas dependuradas ao vento
cheiro de tinta
sabor de suor
uma voz que cicia nas entrelinhas
a terra firme parece que pulsa
debaixo dos pés


Na enseada

A nau incerta
terá sempre
uma enseada

Tua âncora
há de baixar
nas minhas águas

E o olhar
farol hipnótico
te arrasta a salvo

E o porto cálido
será nosso crepúsculo
e nada de mútuo
nos terá valido
um à terra preso
a outra solta do mar
nostálgica do mar


A fogueira de Dido


           I

Navegante que parte
ingrato
olha a terra que fica
não a cópia abstrata
de tua pátria
e sente no peito heroico
a fogueira da Dido


          II

Teu olhar absorve já o alto-mar
no sonho obstinado
não de navegar
mas de só chegar

Aonde?
Ao porto que inexiste
às muralhas por fabricar
ao repouso do patriarca
aos jogos do filho
a quase nada
além de vitórias por deuses dadas

Mas eis ainda
e ainda
o maleável mar
que te arrebata o piloto
e o arrasta morto
e o depõe detrito
nas praias do lado de lá


          III

Meus olhos de Dido te perdem
na distância do tempo
te perdem no sofrer que já não dói
mas o ar de Cartago se carrega
de chamas e fumo e desprezo

Que rastros de guerras por vir
sobrecarregam meu estar aqui
onde não viveste
e sim gozaste a vida
como provisório gigolô?


          IV

Herói por falta de outro
por falta de Príamo que se foi
jogaste com as cartas marcadas
deixadas por Odisseu

Os inimigos já são velhos amigos

Hoje em dia seria fácil
fácil conquistar
nova Ílion
com o estro magnífico
de qualquer Virgílio


Décimas por aí

são coisas de frio
anúncios de néon
na sorveteria
a musa deslumbra
boca no morango
quando vagabundo
meus olhos por ela
meus olhos de língua
com sabor e cheiro
de taças vazias

máquinas zum-zum
testículos tremem
postos nos banquinhos
através de espelhos
cruzam-se pupilas
e as pernas das fêmeas
apertam promessas
todo me imagino
num mergulho fundo
no vão das vaginas

melhor do conhaque
melhor da paisagem
prateleiras rótulos
brilhos de xampu
copos e batons
um mendigo toca
nos meus ombros íntimo
tensas as pessoas
esperam que eu pague
o sossego delas

a musa procuro
num resto de gosto
em minha saliva
para além das nuvens
que os olhos me cobrem
já não há os sonsos
avisos de néon
e o único cheiro
que invade o recinto
é o de desespero


Quasímodo

Enigma será a palavra que gravo
na parede antiga de intensos silêncios
quando já não há nem pátios nem milagres
nem o carrilhão louco nas altas torres
Turbilhão alegre do povo na praça
e eu patético me embeveço olhando a dança
e no desengonço meu divirto a massa
Depois mudo e só cruzo sombrios átrios
para viver meu tormento e minha dor
Tudo é grande e lancinante aqui no peito
em que ecoa como os sinos a paixão
Sinto ainda o morno corpo nos meus braços
e há uma vontade tanta que machuca
Subo então às altas torres sempre minhas
nas ásperas pedras inscrevo este nome
este nome trágico que me resume
eu Quasímodo numa queda absoluta



Floresta primitiva

A seta indica: me
pergunto mesmo assim qual o rumo
o só meu
no emaranhado das estradas urbanas

Cruzar esquinas
saltar charcos
sentir na carne
a água gélida que pinga
das árvores

Os portões se escondem na ferrugem
(as casas agachadas atrás dos muros)
A lâmpada singela dos postes
dá um brilho de choro ao betume
com suas inúteis faixas amarelas

Eis a floresta primitiva de Longfellow
amarrada por fios e cabos
e dutos e paralelepípedos
e pelas unhas sujas dos que a fazem

O coração palpita na pânica noite
a umidade gruda no corpo coberto
como paixão que esfria e se perde

Irromperás de entre os vultos
que assomam dos recessos
destes mínimos labirintos?
Surdirás transida de sob
a marquise mais próxima?

Assim trafego por esta floresta primitiva
e não quero já qualquer resposta
e me aqueço ao calor do povo que aqui vive


Insônias

           Ato I

Um homem sem adjetivos
plantado na noite
olhos postos no fogo
ou o fogo adentro
ardendo:
sonho bom
é o sonho finito

A noite tem isto
do que vai amanhecer
a gravidez de planos
ou panes
ou mesmo uma ideia
muito vaga

Vale a palavra
tímida por calada
mas túmida
redonda: grávida

A palavra
mesmo que ainda
mal gestada

A noite tem disto:
nada é nada
porquanto se imprima
o escuro na calada

Tem de tudo:
o inimigo do dia futuro
o bocejo do tamanho da manhã
as mãos sujas do que se há de fazer
a luz sem luz
e a luz de outras auroras
o túnel às escuras macio de estrume
e o túnel sem equívocos
dos que marcham comigo

Tudo:
a palavra
explosiva
nítida
corrosiva

Ou só: a palavra

No entanto
o fogo lavora
fumo e brasas:
hora

O homem
a fornalha
e o mais que vem
dos atos

Sonho bom é
o que se finda em fato


                 Ato II

Um homem e a sobrecarga do homem
plantando na noite dos olhos
fagulhas:
seria bom tal sonho
fosse ele o fim

Na mesmice da noite
a luz de amanhã
inexorável
dói no delírio

A palavra se desvale
sem luz e brilho
uma coisa que anoitece
ao cerrar das pálpebras

E o homem se carrega
morto de peso
grandeza infinita se si


                 Ato III

Há um pátio mesmo
espécie árida de jardim
nada de fonte com seus anões
apenas um busto macrocefálico

Mas é dia
a luz incide sobre ombros
sobre planos e arestas
nos côncavos
nas curvas

Iniludível dia
um rosto na palma da mão
e sorriso bem adequado

Ninguém porém se veste
porque a nudez é por decreto

E ninguém
para ser ninguém
desnuda por completo
a memória da noite

Mas também ninguém se descuida
e apaga os holofotes

E no espaço restrito deste dia
no silêncio e no tácito
possivelmente a alegria
que jaz fora do palco


Na tarde machucada

um emplastro poroso sabiá
cobre a minha tarde machucada.
doer no sufoco do mormaço
gemer num gole de cachaça
e fechar o instante em que me caibo
para breve balanço.

há uma lágrima
no gatilho de minha arma
fuzil da guerra civil espanhola
símile daquele que sob uma árvore
ceifou a raiz do grito de lorca.
há uma antiguidade de morte
na granada que explode
onde por quem os sinos dobram
à superfície aberta de guernica
en la sangre en la calle en mi pecho.
há um saldo positivo
nos sinais simétricos das rugas
no bronze que o tempo imprime em meu rosto
num caderno de versos esquecido
a caligrafia de menino antigo.

há uma lira de vint’anos de arremedo
um charuto byroniano de azevedo
um pã amigo de mim e do medo
na fácil estrada vicinal do inferno.

há uma obra que fecha para balanço.


No côncavo da noite

Estrelas estalactites
no côncavo da noite
Uma nave navega feito besouro
e meu coração é uma Beirute
e partilha seus conflitos
nos subúrbios em ruína
Ficar triste faz parte de mim
meus momentos de bomba H me redimem

Mas então amo a noite
sem qualquer razão
e faço minha Baixa Idade Média
para renascer de repente
Meus dentes sorriem sorrisos de séculos
e não duram mais que minutos
apenas para romper a pátina
de meus velhos objetos

Há um brilho intenso entre as sombras
as sombras frias dos corredores da história
onde um Colombo louco
encontra uma pedra américa
pedra nel mezzo
e minhas Índias ficam para outrora
Mas circum-navego para aqui
e aqui é meu destino depois do mar

Um sonho guardo na raiz das pirâmides
amar as tágides de Camões
às margens transbordantes do Nilo
náiades vós que os rios habitais
e fazer um discurso triunfal de posse
antes que os faraós votem meu impeachment
e Rosencreutz desapareça
nas ruas lisboetas

Fiat lux com fósforo multimídia
que fascina meus olhos de hipnose
e transmigro tal a pomba da paz
para uma interdita Palestina
e não adianta nada que Kissinger
trace os destinos econômicos da China
pois que falo português brasileiro
e não sei traduzir o paideuma de Pound

Mas ando solitário
por Matacavalos
capitulado por um beijo na nuca
Passo uma noite na taverna
e escrevo ao escrivão Isaías
que leu sem avidez meus cadernos de poesia
E caem com tal calma as aves
que a vida me parece fria


Nos cantos úmidos

Nos cantos úmidos
as mulheres urinam
rios quentes se precipitam pela calçada
o vento corta a vontade de falar

Esperamos as mulheres que mijam
tragamos nossos hálitos de bebida
                nossos cigarros
                nossas palavras

Um carro rompe a noite
a noite engole o carro
as mulheres chegam
se aconchegam
e todos vamos tomar mais cerveja

Em casa no vaso as mulheres se sucedem
esperamos na sala
escutamos o som que jorra pelos corredores de nossa imaginação



Cenários

Nada de mágico nas palavras
nada de mágica
com o estertor

A dor sobe ao palco
e rouba a cena
o cenário
o mágico
e ainda leva de quebra
o contrarregra
que volta para casa
na mortalha da tragédia


2

Num canto de cozinha
assoma a ponta dura
dos joelhos de um menino
com um prato de nada no colo.
É meio tarde na noite
mas há um cadáver na sala.
No quarto
brinquedos quebrados
estuque úmido
e o cheiro remoto da urina
impregnada no colchão.
Mais nada
além do retrato amarelo
e inútil
numa carteira de trabalho.


3

A crise é mesmo assim
dona menina:
a banca é rota
e não advoga nada
os bastidores eram tudo
mas não alimentavam

A vida é assim
esse menino:
os brinquedos envelhecem
mas ainda se brinca
e se enche o prato
com sonhos de vitrine


4

Não há mágica nas palavras
não há Shakespeare
em boca atropelada

Não há mágico
no espelho trágico
do palco saqueado
silhueta contra o pano

(que esconde a realidade do trabalho)

Mas o viver ainda escorre
das cidades ilhadas
no coração da metrópole
feito sangue espesso de facada
ou lágrimas de chumbo

A dor prepara o cenário do dilúvio



Ponto de contato

Meu encontro com o emprego
prego arremate do meio
passageiro
franco-atirador da esquerda
mãos suadas
na carícia mais boba

Hei de vencermos
a esquadra
mesmo o esquadro
que me delimita o campo

O carro no escangalho
no troncho
no tronco
no troco
arrodeia o toco

Gran finale nas espumas
de Castro Alves

                 II

Nosso corpo emerge
eis coisa do dia
nosso corpo esperma
aço farto fundo

Nosso corpo perece
eis coisa do dia


                 III

A figura na rua
plastificada contra a chuva
faz morse e moda
tudo limpo (e muito sujo)

As quedas
os quantos levantes

Os quilos
a tanta fome
no menino que me engraxava


                 —

– O tempo vai de ônibus
   de patins
   o tempo é palpável
   e palpitante
   faço norte com ele
   aos saltos
   no abraço com a morte
   o berro da vida


                 —

– Edson morre na Cinelândia
   na tela Gary Cooper
   não faço por menos
   engendro entorto intuito

   Outros não tinham
   muito talento

   Outros o relento
   a peste
   a tela do cotidiano mais fosco


                 —

– Gota serena de nitro
   sem trêmulos
   sem estrênuos também

   Cova para nós
   nos ondes
   exílio nos andes
   ou nos antes

   Nossa fonte
   a estante explodindo
   na rua


                —

– O apoio
   o enlace na mata
   cipós e braços
   água de clara audácia

   Algo nos caça nos esmaga
   o derradeiro é gota
   nas goteiras da casa
   sangue rubro e duradouro
   plinga


                 —

– O coice da notícia
   fria no vídeo
   o falso da arma
   sem tiro
   no arsenal de papéis

   Em nós exubera
   o pomar
   e o arroio corre pelo deserto
   até o mar


                 —

– Onde o encontro
   tudo é tomado
   a peso de grito
   e do meu salário

   Onde o peito no peito
   a travessia alongada
   o horário
   o ponto furado

   Onde o dia?
   o claro de fogos de artifício
   e bombas


                  —

Daqui o edifício
é visto na fuligem
o olho é tão retina
neblina verde-oliva

Frio paulino
no brim duro

A figura na rua
é única
carga de mundo



Canção mais ou menos

Uma canção mais ou menos triste
vibra nos vidros da janela
meu coração não se dilacera
mas escuto até o fim
essa coisa da noite e talvez de mim

Me agasalho contigo sem amor em Buenos Aires
na rua florida só de gente
na tarde que me fustiga
com os dentes tintos de vinho

Tudo é meio tonto neste mundo
tudo é meio redondo
todas as fotos são perfeitas
e o medo ainda obscuro
no arremedo das notícias

Te encontro ao sanduíche mais duro
enquanto na estação do subúrbio
o tarado se fixa no meu sexo
o polícia nos meus olhos
e na garganta o travo do próximo vômito

Alguém me salva no trem
estou contigo no estrondo
no túnel
na ponte sobre a saudade

O céu do exílio pesa feito chumbo
por certo se terá dito
as lágrimas congelam-se cálidas nos cílios
as páginas voam amareladas
porque haverá de ser outono

E ninguém ficará definitivamente quieto
pois existe sempre uma pergunta
– que praça é esta
– que pátria será que me espera
– quem me ama e a que ponto

Um sol mais ou menos tímido
brilha nas lentes dos meus óculos
o coração não se exalta
porém aguardo até o fim
essa coisa do novo dia
ou apenas de mim


Canção para nada

O sonho está sentado na praça
comigo sob a árvore.
Na árvore nodosa as formigas sobem
estão quase sem destino
na árvore sem frutos.
Mas há sombra
a sombra ganha a tarde inteira
o que só interessa a mim
e ao sonho que sonha em mim.

Não estou muito para nada
pensativo demais para nada
nada em excesso para nada.
O sol caustica e daqui
é como se estivesse lá fora.
O sol caustica e aqui
é um dentro aconchegante.
Meu sonho tem uma árvore inteira
nele atravessada
a árvore com seus galhos
e seus pássaros empalhados.

O sonho sofre na praça
cada galho é uma forca
cada folha um bilhete sem desígnios
eu mesmo me componho
assim para uma foto ou uma notícia
assim a espera na antessala.
O sonho é apenas algo que se tem
e é quando o sonho é tudo.
O sonho é só todo um mergulho
nada mais o sonho pode ser
nada mais se pode ser.
A árvore sofre a minha presença na praça
a passagem da tarde sofre
tal uma eternidade.
Cada pássaro canta
a cor cinza de cada nota.
A gota inopinada
será sem dúvida
uma lágrima.
A sombra esfria súbito
feito um calafrio.
No meu abraço não há ninguém
além de mim.
Na forca dos galhos
não há ninguém além de mim
nas folhas e seus oráculos
não há senão o vácuo
que se apossa de mim
que se assenta na praça
que sonha por mim
que canta ante o silêncio
repentino dos pássaros.


Posses

Tenho um verbo,
uma precisão,
uma ânsia amazônica
de devastação.

Mas tenho um pouco
do que preserva,
este silêncio, harto,
confuso tal o medo.

Um toque, presença
em quase-dedos,
roçagar de pelos
e a raiva umbilical,
que é a mais suave
na dor e no corte.

Estou no meio
de meu país,
vejo fronteiras
e dráculas.
A amizade forte
à beira da cachaça,
e um amor de chão
em gente sem nada.

E tenho a arma,
a mulher desnuda,
o lirismo asmático
e a vista longa
dos derradeiros.


A última vez

sigo para o norte
pouso em baltimore
por cinco dias as lembranças
me engolem
sobre o túmulo de virgínia
nevermore

por quatro dias o delírio
após o último porre
última vez em baltimore
era só o que pedia
era só o que podia
mas agora
lado a lado com virgínia
never nevermore